quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Catatonia

Eu não sei onde estão os meus livros de poesia. Eles ditam as regras das rimas, os ritmos e os rumos das frases nos versos que faço. Mas agora, não sei onde estão os meus livros de poesia.
Às vezes, sem os livros, ouço as vozes dos versos sussurrando no meu silêncio e esses são momentos raros. Agora não é um momento. Os meus livros de poesia se perderam na bagunça organizada do meu dia.

abro a porta pela manhã
abro um e-mail da Professora Emeline de Castro
abro Drummond na tela
abro a Folha
o e-mail
o poema
a notícia
o e-mail
a notícia
o email
o poema
a notícia
o e-mail
o e-mail
o e-mail, o e-mail, o e-mail
fecho a porta ao fim do dia
e os meus livros de poesia

- Não estão lá.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

LUZ

pousou
na linha da borda da minha cama daquele dia

a elipse eclipsada dos seus olhos
redondos.
sempre semicerrados,
sempre semiabertos.
tão pretos,
confundem
os limites da iris
com os limites.

ando agora equilibrada no contorno da pálpebra
segura pelos seus cílios,
presa nos músculos oculares
da sua

pupila.

sábado, 30 de outubro de 2010

Para o bálsamo não existem contos de amor

Dormiam com a janela aberta para que a luz cortante do dia não os deixasse perder a hora. Costumavam acordar cedo, mas não pelo costume. Trabalhavam pela manhã em funções vazias que preenchiam apenas os bolsos, mal e mal. Acordavam sempre meia hora antes do despertar. Ainda enlevados pela languidez do sono, tocavam-se. Ainda de olhos fechados, menos pelo desejo que pelo resquicial de sono, movimentavam-se incessantemente até o gozo final. Contados minutos de recuperação muscular, o dia começava.
Comiam antes pois as funções empregatícias não permitiam que se comessem depois. Ele escrevera quando vivo, mas crescera e as necessidades fisiológicas mudaram. Quando não se sente mais a carne cortando de desejo, não ha mais facas que motivem palavras; sentia apenas fome, uma fome de café da manhã. Ela fazia café. Ele sorria e a abraçava próximo à pia da cozinha, afagava-lhe os cabelos desalinhados, “Linda”. “Com você me sinto em paz como ninguém”.
Tomavam banho juntos, eram para o outro as mão que esfregam as costas. As dela, admiradas por ele pela tênue curvatura da cintura, pela breve extensão ideal de pele, pela uniformidade de cor. Lisas, com a temperatura ideal, a imagem ideal. As dele, entregues gratuitamente à esponja, extensas, largas e curtas ao mesmo tempo; o banho sempre lembrava-a o quanto aquela água quente curava as feridas dele, nas costas, nos braços. Beijava o alto das costas dele como para acelerar o bálsamo, na tentativa de apagar inutilmente lembranças que nunca seriam suas.
Despediam-se sempre demoradamente. Sempre ansiando que a sequencia do dia findasse antes mesmo de iniciar-se. Olhavam-se diariamente nos olhos, languidos e sempre diziam amar-se, juravam saudades, juravam reencontros para a noite, manhã após manhã. Ao longo do dia, ele refugiava-se do tédio e da repetição diária das suas tarefas vazias lembrando-se do seu sorriso suave. Desacelerava seu coração, abrandava todas as raivas, como um pano quente sobre a pele em carne viva. Abstraia as imperfeições todas da vida, no rosto dela, retratado sorrindo.
Depois de perambular anos a fio com a sola nua dos pés sobre as brasas, pensava, ela seria a superfície mais plana que poderia desejar para assentar a alma. Lisa, uniforme, com a temperatura ideal, o tamanho ideal, a imagem ideal. Estática, sorrindo na sua memória, emoldurada. A arte seria era ela própria, com cores já pintadas, com traços já delineados, diariamente na soleira da porta, quando ele chegava em casa.
Deitava-se no sofá, que era de ambos, propositalmente pequeno para que estivessem sempre próximos. Ela encostava-se ao seu ombro antigo, indagando sobre o dia, diariamente. Oferecia vinho, acendiam um cigarro, juntos. Conversavam. As palavras dela eram sempre a sensatez que ele procurava nos outros. Pedia opiniões a ela pois era detentora do bom senso que não havia fora dali. Antes, ele escrevia para buscar-se nas próprias palavras. Para delinear os rostos irregulares que hoje compõe seu labirinto de arte-lembrança. E ela servia pérolas a ele, em bandeja de prata, pensando poder carregá-lo pelas mãos, através de um labirinto agora sem brasa, por caminhos lisos uniformes, com a temperatura ideal, o tamanho ideal. A imagem ideal. Entre uma diretriz e outra, ela sorria, entre um gole e outro, tragava, entre um dia e outro vivia para, diariamente, ser uma santa.

Noite já alta, aninhava-se nua no altar imaculado, sozinha.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Previsível.

Enquanto passas em Rotação Universal,
vejo minha vida passando, expectante.

Obviamente esquecendo o verso óbvio.

Me perdendo em redundâncias,
me afogando em memórias perdidas e mesmo por mim esquecidas,
afago o trago programado
e me preparo.

- o futuro será o mesmo.

[26.06.2010]

Covardia.

Enquanto a vida vivia venturosa
Eu olhava-a, viva, lacuna vaga
Da minha alma, pelo olho mágico
Da porta cerrada que beirava a rampa.

Pulsava implosivo, na imobilidade dos pés,
O descompassado diafragma. Fincados no chão.
A vida vinha, ventava em mim,
Levava o vazio, voltava.

Enquanto o rosto inerte, incoerente,
Sorria.

[31.05.2010]

utilidade

diria o indizível
se me visses
invisível,
se te mostrasses
- o caos -
como antes.

seria impossível
que olhasse no olho
imóvel
e lá não me visse,
devassa e descartável
como sempre.

engoliria trombas de elefantes brancos
pra alargar a garganta
e te engolir num trago
languido,
largo.

suportaria o ir e vir
da tua indecisão
elástica,
dona dos passos
curtos
que os teus pés
largos
hesitam em dar.

calaria o grito
impróprio
do trato ingrato
de abandono pré-datado
que, ilusório,
deliria a memória.

seria simples:
sumiria
eu, e toda a minha poesia.

[16.02.2010]

subito sonho

eu senti seu cheiro
na nuca sua
me veio a saudade
dos cheiros seus
que senti nessas saudades

e encostei meu nariz
no ondulado cabelo seu
pela ondulação
dos meus olhos
até o limite da lágrima
quebrando

e então te abracei as costas
e apertei tão forte
que empurrei sua alma
na minha

e te mordi tanto o pescoço
que te guardei
um pedaço na boca
engolindo
num susto tanto

que despertei.

[10.02.2010]

futuro do pretérito/ condicional

nem toda a sua realidade
me tirará o prazer
de enquadrar e congelar cada uma das minhas lembranças.

seus defeitos
seus pêlos
seus pés
o seu reflexo no espelho
e o seu descontrole de fim de noite
seriam censurados e repintados na minha memória.

eu seria capaz de sonhar cada ausência prevista
cada dilema covarde
cada escolha fugitiva
como um romance urbano, psicossomático.

eu seria capaz de delirar a cada adeus
a cada vez que sou trocada
por sonho
por dor
por liberdade, por qualquer coisa.

eu te esperaria eternamente,
se isso fosse substrato suficiente
pras minhas poesias baratas.

Será?

[16.01.2010]

Buraco debaixo da terra

Quando eu morrer
Me ponham debaixo da terra com passeatas pela paz em camisetas com meu rosto e silêncio.
Quando eu morrer
De tráfego
De cimento
De cinza de poluição visual
Intoxicada pela megalópole-correria onde o dia tem a metade do tempo,
Vocês vão saber que eu amei
As pessoas que assumem não enxergar um palmo a frente de si.
Os tantos rostos que passam despercebidos sempre.
Que eu amei a verdade explícita em cada prédio pós-moderno superlotado.

Porque mais vale o emparedamento metropolitano à inércia do canto dos pássaros escondendo tanto julgamento.
À cordialidade querendo vos ver às costas.
À paciência só servindo à perda de tempo em falatórios especulativos e falsos.
À inocência ridícula fingindo não ver em nome de ideais inúteis.

Quando eu morrer há de ser lá.
Porque onde não há fumaça, morre-se de inveja.
Onde não há esgoto, tóxica é a mentira.

Porque a única coisa que corre sobre o planalto provinciano é a arrogancia e a falsidade.

[11.11.2208]

à queima roupa

queria segurar sua mão sem ser consolo
e levar você
sem segurar sua mão
com as mãos falando
dos seus dedos de delicadeza disfarçada

queria uma história pra te contar
antes de dormir, antes de viver
aquela história, com outro final
onde tudo começa...

queria que essa sua ansiedade
fosse a calma que eu sinto
quando vejo que você chegou
e a sua janela da minha janela
tá completa

eu queria que as surpresas da minha noite
não fossem saídas furtivas
de mistérios lacrimejantes
à portas fechadas, à queima roupa
e sem luz no fim

eu queria ver você
pra ver você saber
de você
e saber de você
o que você vê
de mim em você

(12.06.2008)