sexta-feira, 5 de outubro de 2018

mordida

o olhar de uma ferida aberta
é a a carne exposta em fenda vermelho-cristalina
a ferida vidrada
é uma dor de fundo que não passa nem ultrapassa
o rasgo no corpo
como um olho fora do rosto

o pus começa a crescer nas bordas
quase imperceptível
até que contorna a pálpebra carnosa
como cajal

quando a ferida te olha
é preciso fazer uma escolha

a negação é o mal de uma catarata
uma camada grossa
como uma lágrima
embaixo de uma lente opaca
sem luz
onde antes te olhava um cristalino e vermelho
rombo,
o pus

quando a escolha te olha
é preciso fazer uma ferida

debridar são todos os erres dessa palavra
recortando a carne exposta
como uma navalha
cega ou serrilhada

o grito sai dos ossos do tórax
como uma bolha
sobe até a boca
e encontra os lábios: fechados.
encurralado, evapora até os olhos
pelas fossas nasais
e se precipita em lágrimas
arrancando a grossa
lente
opaca

o ar falta
ânsia
ânsia pela ânsia
que se dilui rosto abaixo

todos os mortos foram arrancados
da fenda dos olhos
daquela ferida
de volta à carne viva
exposta, aberta como uma pálpebra
a carne vive

quando é preciso
a ferida escolhe olhar

o álcool e o óleo
curam o resto
do olho aberto na perna
feridas fecham
as cicatrizes são eternas