“Cada vez que tropeçasse, perderia um pedaço da perna”. Essa foi a maldição lançada sobre ela quando nasceu. Como acabara de nascer, não ouvira as palavras proferidas decretando seu destino, durante o primeiro choro seco sem lágrimas e já aí, tropeçando em si, perdeu a primeira unha do mindinho.
Aprendera a andar com um esforço hercúleo. Porém, como ainda era inteira, perdia pedaços das unhas quando falhava. As unhas cresciam novamente e ela podia hesitar um pouco mais antes de pensar que poderia aprender a calcular cada passo. Não aprendeu.
Perdeu o primeiro pedaço definitivo de perna, o dedo mindinho direito inteiro, aos seis anos, tropeçando, na sala de casa, nas alças longas de uma mala que não era sua. E durante um tempo, tropeçaria na mesma sala da mesma casa em mais outras tantas coisas que não eram suas, perdendo dedos, planta dos pés, beirando perder o calcanhar.
Quando deu-se conta das pernas incompletas, que o eram por sua culpa, deu-se conta de que tropeçar era a causa e caiu no desespero de não poder cair. Acabou por perder os dois pés nessa queda. Abandonou a mesma sala da mesma casa onde perdera o primeiro mindinho enroscado numas alças longas e alçou vôo para longe.
Voando, não andava. Não andando, não tropeçava. Sem olhar pra baixo, estava imune de perder-se parte a parte. Voou por muito tempo, alto, longe, cegamente. Voou até alcançar a altura instransponível do tempo. O tempo passara tanto e tão rápido enquanto voava que chegara a esquecer a maldição, a ausência dos pés. O desequilíbrio da ausência dos pés. Desceu ao chão.
Esta queda brusca e alta custou-lhe o tornozelo e a crença que podia andar sem ele, impensadamente. Sentada, pernas incompletas esticadas, observou-se pela primeira vez. Apesar da ausência dos membros, era capaz de enxergar cada cicatriz que as perdas lhe deixaram. Era capaz, agora, de ver que não era ela a culpada. As parte iam-se quando ela caia, sem que ela mandasse. A maldição era exterior a ela. Entendeu.
Sistematicamente, construiu apoios para os tornozelos. Com rodas, com estruturas firmes que a mantivesse equilibrada, mesmo que a base de apoio fosse fraca. Acoplou ainda às rodas, um mecanismo de freios, que controlasse a velocidade com que correria, desacelerando-a quando, impulsivamente, esquecesse a maldição. Auto controle. Perfeição.
Assim, pôde voltar à mesma sala da mesma casa do início dos Tempos. Suavemente rodava pelos corredores, sabendo onde ir, guiada por uma razão embasada pelo sistema planejado de sustentação e freios. Sabia quando estar e quando partir. Quando julgou necessário, sem que isso, dessa vez, lhe custasse qualquer centímetro de pele, partiu.
Era tanta razão, era tanto controle, era tanta técnica, que esqueceu-se dos perigos. Quando deu por si, corria desesperada. Confundiu o vento das alturas com o vento de ladeiras íngremes e atirou-se. Quando deu-se pelo abismo no fim da rampa, era tarde. Seus freios já não valiam. Sua estrutura já não valia. O sistema perfeito falhara. Ela falhara.
Espatifada, insone, alheia, perdeu as canelas até os joelhos desarticulados. Tinha agora a metade do tamanho ideal. Sentada no fundo do abismo, diminuindo ainda, entendeu que não haveria estrutura no mundo capaz de controlá-la. Malditas palavras proferidas ou benditas palavras profiláticas? Deveria ter-se guardado ao nascer, cega às alças longas e asas salvadoras? Ou cada parte perdida seria simplesmente uma parte sua guardada fora de si, para ser, um dia reencontrada e realocada, devolvendo o equilíbrio infantil que perdera?
Era ainda capaz de ver as cicatrizes. As antigas e as novas. Impensadamente, postou-se a reconstruir um sistema de apoio, de estruturas fortes, e principalmente de freios mais eficientes, agora acoplado aos joelhos. Veria o mundo de baixo, mas jamais deixaria de ver.
Mas ela nunca deixou de andar.
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