quinta-feira, 6 de junho de 2019

Post Morten

Eu não parava. Mas mal me lembro dos dias, me lembro mesmo é das madrugadas. Dos copos, canecas, garrafas. Do mundo sempre com os olhos cravados debaixo da bandeja. De como a musica ensurdecedora silenciava meus pensamentos. De como o silêncio gritava nos intervalos. A vida correu com a bandeja por cima, nesse tempo. Foram pessoas e mais pessoas e mais pessoas. Foram milhares de olhos diluídos na bebida servida e tomada, encharcada. Pingava de um lugar para outro, sorrateira, sempre à noite. Na madrugada. Na madrugada, o olho diluído estala mais. Antes de agora, o que era trabalho saiu da madrugada para uma esteira parada de dia. Parada atrás do ritmo repetido da registradora; o tempo encolhia para segundos. O dia durava segundos. À noite, a vida acontecia. O mundo que era novo e esperado acontecia. Ventava venturoso. Pensava, sem querer, que a maior parte dos meus novos amigos eu nunca tinha visto sob a luz do sol, como os amigos antigos. Nenhuma vez. As coisas só são realmente claras à noite. A luz é à noite, quando nada ofusca a vista, contorno nítido, cores exatas. Minha memória de madrugada, ainda assim, tem transversais demais. O bêbado bebe à noite pra que os contornos exatos das linhas o ajudem quando embaralhá-las. As angustias também devoraram as madrugadas. Quanta cerveja salgada de choro, conhaque. Andares incertos. O silêncio da rua de madrugada, diluído, plurifalava tudo ao mesmo tempo. A madrugada são braços de pelo preto onde se desmorona depois. Não sei como nem por onde, mas a certeza vaza, extravasa; de madrugada . Às vezes inunda, às vezes só seca. E depois de tudo, passou à madrugada esfumaçada o prazer e a dor. Soprava risadas e gritos, transpirava gemidos e mudos, silêncios e vozes misturadas. Nem sempre contidas pelas paredes frias, a madrugada flamejava. O dia já não importava, claramente; a noite sempre era. Sempre seria.

(maio.2010)

domingo, 26 de maio de 2019

ESTÁTICA

uma foto é um objeto
completo
a imagem e seu negativo


o negativo de uma imagem
não é
senão
a própria imagem
às vezes imprópria
mas sempre
estática


negativa ou positiva,
se nego a ativa
sou passiva;
se nego a passiva
sou ativa.


paralisada
e ainda presa
- à bruxa ou à fada -

na dicotomia
de ser isso
ou não ser


nada

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Não mexe na janela.


Você quebrou o vidro da minha janela antes de sair. 

A janela que ficou emperrada por um ano e meio, não abria nem fechava e, por uma fresta eterna, a janela ventava. A janela paralisou pela primeira vez depois da reforma - parece que o vidro partiu e a secagem da massa foi invadida pela chuva febril que caía. A madeira em volta, inchada, cheia de braços, agarrou a correia de aço, emperrou a janela com uma fresta exposta. Era abril. Foi 2015. O esforço que foi pagar o preço da janela consertada - o esforço do colocar as corredeiras nos lugares certos, limpar os leitos por onde correm, olear as engrenagens. O tempo que levou. Mas no fim, feito, fluia. Abria e fechava. Escancarava o buraco na parede que eu amava, sem o vendaval da janela que ventava. O vidro e o fluído. Parecia parceria.

Importante te lembrar que trata-se de uma janela guilhotina. Um olho escancarado que, quando aberto quando fechado, deixa vazar Luz pelas pálpebras duras e transparentes, enquanto decepa a imagem com um horizonte obrigatório de madeira. Lembrava também a borda que divide a vida em dois - velhos limites ainda invisíveis. Sem a janela de vidro, o que sobra é a matéria escura da veneziana, uma fileira de fendas, por onde a luz só entra mesmo quando as pálpebras sempre semicerradas, sempre semiabertas se fazem, mas o vento... No fundo dessa pupila, no alto de um prédio próximo, eu leio Festa16 - lá no fundo do que está fora de mim. A Festa foi mesmo um grande vendaval. A Festa foi uma farsa. Dezesseis... A farsa, ainda pior que a tragédia, queima com excesso de luz até a última cinza do que seria.

Eu tinha um mini filtro de sonhos pendurado na janela de vidro, quando você quebrou minha janela, antes de sair. Eu mesma tinha feito, pequenino, uma peneirinha, quase, de madeira e linha. Minha peneirinha. Ficava no puxador da janela, tão fragilmente; subia quando o olho da guilhotina abria, descia quando se fechava e então parecia uma lágrima pendurada no horizonte de madeira entre as pálpebras envidraçadas. Mas era minha.  Gostava dela - era uma pequena proteção contra o que insistia em vazar pra dentro do quarto. Um dia, ao tentar fechar a janela, antes de dormir vaziamente com você, desprendeu e caiu no vão entre o vidro e a parede. Travou a janela de novo.

- Não mexe a janela.

E num tranco contrário à minha voz, sempre inaudível, você puxou brutalmente a janela, como quem quer esconder com vidro a verdade lá fora. Por dentro. A janela trincou e o vidro estilhaçado me enviou de volta ao passado. A janela, mais uma vez, quebrada como antes. Antes de sair, encostado na janela, você hesitou. Era possível ver seu olhar de costas, encostado no buraco aberto da janela escancarada, já sem vidro há um tempo, vendo alí a única saída. Sem saber se pula ou não. Eu sabia que se hesitasse também, fecharia a janela atrás de você. Foi a primeira e única vez em que você disse, vou pular, e eu disse, pula. Fez que foi e desceu  à pé - nem assim, você não é capaz de pular nem assim. Ainda deixou um beijo mal parado na minha boca, ao lado do buraco do elevador aberto que ressoava, te esperando sair. Vai, já não bastava a janela quebrada.

De novo eu e a janela aberta. Paralisada. Quanto tempo vou levar pra conseguir consertar o estrago dessa vez? Agora, sem o vidro, mesmo o ouvido se cansa, que o barulho do mundo não pode mais ser barrado, não há retiro. Bom Retiro só no nome. Assim, se insone, abro a janela, por hora, só posso olhar para as esquinas vazias onde você costumava andar, aceitando o vendaval que entra pelo buraco escancarado na parede. Ou fechar a janela e provocar a memória do vão sempre semicerrado, sempre semiaberto, dos dias que chove ou venta demais pra deixar a janela aberta. Você foi no verão, levou o vidro e o inverno...

O inverno virá.

(2017)