sábado, 30 de outubro de 2010

Para o bálsamo não existem contos de amor

Dormiam com a janela aberta para que a luz cortante do dia não os deixasse perder a hora. Costumavam acordar cedo, mas não pelo costume. Trabalhavam pela manhã em funções vazias que preenchiam apenas os bolsos, mal e mal. Acordavam sempre meia hora antes do despertar. Ainda enlevados pela languidez do sono, tocavam-se. Ainda de olhos fechados, menos pelo desejo que pelo resquicial de sono, movimentavam-se incessantemente até o gozo final. Contados minutos de recuperação muscular, o dia começava.
Comiam antes pois as funções empregatícias não permitiam que se comessem depois. Ele escrevera quando vivo, mas crescera e as necessidades fisiológicas mudaram. Quando não se sente mais a carne cortando de desejo, não ha mais facas que motivem palavras; sentia apenas fome, uma fome de café da manhã. Ela fazia café. Ele sorria e a abraçava próximo à pia da cozinha, afagava-lhe os cabelos desalinhados, “Linda”. “Com você me sinto em paz como ninguém”.
Tomavam banho juntos, eram para o outro as mão que esfregam as costas. As dela, admiradas por ele pela tênue curvatura da cintura, pela breve extensão ideal de pele, pela uniformidade de cor. Lisas, com a temperatura ideal, a imagem ideal. As dele, entregues gratuitamente à esponja, extensas, largas e curtas ao mesmo tempo; o banho sempre lembrava-a o quanto aquela água quente curava as feridas dele, nas costas, nos braços. Beijava o alto das costas dele como para acelerar o bálsamo, na tentativa de apagar inutilmente lembranças que nunca seriam suas.
Despediam-se sempre demoradamente. Sempre ansiando que a sequencia do dia findasse antes mesmo de iniciar-se. Olhavam-se diariamente nos olhos, languidos e sempre diziam amar-se, juravam saudades, juravam reencontros para a noite, manhã após manhã. Ao longo do dia, ele refugiava-se do tédio e da repetição diária das suas tarefas vazias lembrando-se do seu sorriso suave. Desacelerava seu coração, abrandava todas as raivas, como um pano quente sobre a pele em carne viva. Abstraia as imperfeições todas da vida, no rosto dela, retratado sorrindo.
Depois de perambular anos a fio com a sola nua dos pés sobre as brasas, pensava, ela seria a superfície mais plana que poderia desejar para assentar a alma. Lisa, uniforme, com a temperatura ideal, o tamanho ideal, a imagem ideal. Estática, sorrindo na sua memória, emoldurada. A arte seria era ela própria, com cores já pintadas, com traços já delineados, diariamente na soleira da porta, quando ele chegava em casa.
Deitava-se no sofá, que era de ambos, propositalmente pequeno para que estivessem sempre próximos. Ela encostava-se ao seu ombro antigo, indagando sobre o dia, diariamente. Oferecia vinho, acendiam um cigarro, juntos. Conversavam. As palavras dela eram sempre a sensatez que ele procurava nos outros. Pedia opiniões a ela pois era detentora do bom senso que não havia fora dali. Antes, ele escrevia para buscar-se nas próprias palavras. Para delinear os rostos irregulares que hoje compõe seu labirinto de arte-lembrança. E ela servia pérolas a ele, em bandeja de prata, pensando poder carregá-lo pelas mãos, através de um labirinto agora sem brasa, por caminhos lisos uniformes, com a temperatura ideal, o tamanho ideal. A imagem ideal. Entre uma diretriz e outra, ela sorria, entre um gole e outro, tragava, entre um dia e outro vivia para, diariamente, ser uma santa.

Noite já alta, aninhava-se nua no altar imaculado, sozinha.